A Mendiga, Rembrandt
O último dia de verão e um calor de 39 C. Decido ir à praia uma vez que a estação findara e minha pele ainda estam¬pava a cor da última primavera. Estico a canga na areia. Confortável em minha cadeira de praia, olho em volta. Mar calmo e águas transparentes.
Um sentimento de comunhão com o mar toma conta de mim. Muitos ouviram o mesmo bom convite do mar e do sol naquela manhã de areias concorridas. Foi quando vi a magra mulher maltrapilha de meia idade que há poucos dias ali mesmo estava quando eu caminhava no calçadão. Ajoelhada na areia, compenetrada no seu trabalho. Aquelas mãos realizavam um vigoroso trabalho de retirar das sacolas que a rodeavam as mais diversas embalagens, sacos e papeis variados em cores e ta-manhos para limpá-los. Para cada embalagem alçada era dedicada especial atenção. Desdobrava e limpava para depois dobrar novamente com maior capricho. Findada a dobradura devolvia a embalagem à sacola destinada aos saquinhos já vistoriados.
Chegou a vez de um desses reluzentes sacos de batata frita. Novamente o ritual: desamassa, abre, olha o interior, depois esfrega um pequeno trapo para limpar bem o saquinho. E esfrega com tal intensidade que eu poderia imaginar que a senhora possuísse larga experiência nos serviços domésticos. Mas, agora, sem teto e trabalho, restava-lhe cuidar bem dos seus únicos pertences. Ou seja, tudo que lhe poderia ser útil e mesmo inútil nas ruas da amargura, nas noites de inverno, nos dias de verão, tantos que ainda virião.
Pensei que assim ela guardava, também, a memória dos gestos que lhe eram ainda familiares, como este de cuidar de, ser responsável por. Esta crível mulher do terceiro mundo globalizado realizava seu trabalho sem em momento algum levantar os olhos para nós outros que, como ela, nos banhávamos ao sol matinal. Supus que ela soubesse estar sendo observada como um ator no palco ou como uma presa na jaula. Não encarava a platéia porque era um difícil papel a desempenhar. Mas o pior provavelmente é o que ela percebia dessa platéia quando ousavam olhar a maltrapilha: aquele estranhamento que provoca o medo, como se fosse um elemento absolutamente fora do contexto. Mas não era. Era a realidade cruel que só existia, talvez, pelo fato de a negarem, a isolarem.
Pois que finalizada a vistoria na sacola que guardava os saquinhos de embalagens diversas, sem hesitar a mulher pegou outra bolsa. Agora era uma feminina de couro velho e ressecado. Abriu-a, observou seu interior e iniciou a retirada dos objetos nela contidos. Primeiro, uma carteira de dinheiro. Confere os espaço dentro e torna a guardá-la na boslsa de couro. Depois um frasco de perfume. Tira-lhe a tampa, cheira a abertura do frasco, coloca um pouco no pulso esquerdo aproximando as narinas para sentir novamente o aroma e, repentinamente, num gesto de glorioso desapego, despeja areia abaixo o líquido contido no vidro. Este, agora vazio como as outras embalagens, é imediatamente devolvido retornando à bolsa da onde fora retirado, como fizera como os objetos anteriores.
Talvez, por algum motivo que desconheçamos minha heroína tenha decidido mesmo é colecionar embalagens. Parecia mesmo estar vendo uma sátira que ela fazia com a questão das belas embalagens sem conteúdo que tanto valoriza o ocidente.
O próximo objeto retirado foi um espelhinho. Deteve-se um pouco mais nele, provavelmente um tipo de hipnose provocado pelo poder mágico do espelho que, neste caso, inadivertidamente deslocou o objeto a ser observado. Não mais o objeto espelho, mas o que ali se vê refletido. Assim, a mulher me parece agora estar conferindo sua identidade. Quem sabe buscava ali um reflexo do que fora anos atrás, mesmo que na imagem estampada naquele momento tanto a identificasse com outros milhões de humanos quanto lhe relatasse uma dor íntima, dela só: miséria e solidão. E, novamente, num ato de rebelião contra tal estado de coisas, lançou também seu reflexo de volta à bolsa. Ela mesma era a embalagem desgastada e sobrevivente.
Enfrentava o embate dessa angústia nesse difícil deparar-se com seus conteúdos perdidos e a cidadania roubada. O que me parecia estar a lhe gritar era: sua razão de ser não era aquela para a qual estava sendo. Diferente de um saquinho qualquer de batatas fritas que é pleno também quando já vazio, sem seu conteúdo original.
Sentou-se na areia abraçando as pernas e pela primeira vez mirou o mar e bem no horizonte incerto. O que via? Perguntei a mim mesma. Que pensamentos e sentimentos o primordial gesto de olhar o horizonte lhe trazia? Creio que ela não conseguiu suportar o peso dessa incerteza, pois não se deteve muito na miragem. Tomou nas mãos um copo descartável que estava ao lado e bebeu um gole de qualquer coisa. Imediatamente, cuspiu fora como se quente fosse, não podendo, assim, eliminar suas várias sedes ou simplesmente o fez porque, se não me engano, esta manhã era para esvaziar o mundo ou esvaziar-se.
Mesmo o mar parecia vazio para mim que fora tocada por ela, a mulher. Porém, sua aparição inundou-me. Fora totalmente absorvida por ela. Ela se levanta. Vejo seu traje: apenas a longa camiseta verde rasgada nas costas deixando entrever o sutiã. Os cabelos desciam à altura do peito. Foram lisos. Agora, emaranhados. A pele do rosto, à força curtida pelo sol, se encarregava do contraste com a branca cabeleira. Usava um colar de enormes bolas amarelas de plástico. Neste momento pensei que essa mulher carregava em si um símbolo nacional. Mas não seriam as cores da bandeira, não, meu senhor!
Ainda em pé tira da bolsa de couro um pente. Senta-se de novo na areia quente e, determinada, empenha-se no desembaraço dos cabelos. Foram quase quarenta e cinco minutos de trabalho. Mas quanto tempo levará o desembaraço da vida?
O que é o último dia de verão para cada um de nós? Pode ser um mergulho em águas frescas. Pode ser um mergulho em águas rasas, turvas ou bravias, e para um escritor e um poeta é um dia igual a todos os outros dias em que não apenas olhou, mas viu. Não apenas viu, mas assim escreveu do mergulho que deu no que viu.
By Tãnia Barros in Cosa Cacau - 2013 - TLBB
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